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Opinião: A incoerência do Carf quanto à prescrição intercorrente e ao voto de qualidade

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20 Janeiro | 2022

Opinião: A incoerência do Carf quanto à prescrição intercorrente e ao voto de qualidade


 

O presente artigo não visa a tecer juízo de valor entre os entendimentos firmados pelo Carf sobre a prescrição intercorrente e o voto de qualidade, apenas demonstrar que há clara incoerência entre eles, cuja única semelhança é a conclusão de forma desfavorável ao contribuinte.

Os contribuintes têm conseguido importantes vitórias em âmbito judicial para reconhecer a aplicação da prescrição intercorrente administrativa, prevista na Lei nº 9.873/99, para afastar cobranças de créditos não tributários que foram discutidos via processo administrativo fiscal, mas que ficaram paralisados por prazo superior ao previsto no §1º do artigo 1º da referida lei, que assim diz:

“Artigo 1º  Prescreve em cinco anos a ação punitiva da Administração Pública Federal, direta e indireta, no exercício do poder de polícia, objetivando apurar infração à legislação em vigor, contados da data da prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado.
§1º. Incide a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada, sem prejuízo da apuração da responsabilidade funcional decorrente da paralisação, se for o caso”.

Em âmbito administrativo, a tese não tem prosperado, mas os contribuintes continuam brigando pela revisão da súmula nº 11 do Carf que trata da prescrição intercorrente e diz: “Não se aplica a prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal”.

A súmula não faz distinção entre crédito tributário e crédito não tributário, ao contrário da Lei 9.873/99, que diz em seu artigo 5º que apenas os processos e procedimentos de natureza tributária não serão objeto de prescrição intercorrente.

Trata-se de uma impropriedade do legislador, pois não existe processo ou procedimento de natureza tributária. O que tem natureza tributária ou não é o crédito, portanto, o artigo 5º deve ser lido no sentido de que apenas os processos em que estejam em discussão créditos de natureza tributária não estão sujeitos à aplicação da lei.

Ocorre que o processo administrativo fiscal serve de rito para o julgamento tanto de créditos tributários quanto de créditos não tributários, como é o caso das multas aduaneiras, por exemplo.

Contudo, por não ter feito distinção entre as naturezas dos créditos ao editar a súmula nº 11, os membros do Carf têm aplicado a súmula de forma generalizada para afastar a possibilidade de aplicação da prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal, com exceção de alguns conselheiros e conselheiras, que reconhecem a necessidade de revisão da súmula.

Cite-se pequeno trecho extraído do voto vencedor do Acórdão nº 3402-008.556, proferido pela conselheira Cynthia Elena de Campos, da 2ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 3ª Seção de Julgamento do Carf, que negou a aplicação da prescrição intercorrente em processo que discutia a aplicabilidade de multa aduaneira:

“(…) Igualmente é importante ponderar que não é razoável considerar o direcionamento conferido pelo Regulamento Aduaneiro ao Decreto nº 70.235/1972 para efeito de suspensão da exigibilidade da multa e, em contrapartida, isoladamente desconsiderar o rito atribuído ao PAF quando se trata da incidência da prescrição intercorrente (…)”.

Observa-se que um dos fundamentos para manter a aplicação da súmula é a suposta incoerência que poderia advir de um tratamento diferenciado para créditos de natureza tributária e créditos de natureza não tributária, eis que ambos estão submetidos ao mesmo rito de julgamento (processo administrativo fiscal).

No mesmo julgamento, as conselheiras Maysa de Sá Pittondo Deligne e Thais de Laurentiis Galkowicz ficaram vencidas, tendo a primeira apresentado declaração de voto interessantíssima, não só defendendo a aplicação da prescrição intercorrente, mas também traçando um paralelo com a atual forma de aplicação do voto de qualidade.

Destaque-se o trecho abaixo extraído da declaração de voto:

“(…) A existência de regras processuais diferentes dentro do processo administrativo fiscal a depender da matéria em litígio é algo que passou a ser admitido de forma clara dentro deste Conselho com a regra do voto de desempate do artigo 19-E da Lei nº 10.522/2002, incluído pela Lei n.º 13.988/2020, aplicável apenas para o ‘processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário’. 12 Inclusive, com a edição da Portaria ME nº 260/2020, que indica como esse dispositivo deve ser aplicado neste CARF, foi expressamente diferenciado o processo de exigência do crédito tributário das demais espécies de processos de competência do Conselho (dentre as quais os processos de exigência do crédito não tributário em matéria aduaneira): (…)”.

A constatação da conselheira é salutar, pois a Lei nº 13.988/2020 acrescentou o artigo 19-E à Lei 10.522/2002 determinando que o voto de qualidade não se aplica ao processo administrativo de determinação de exigência de crédito tributário, resolvendo-se a causa favoravelmente ao contribuinte.

Observe-se que mais uma vez o legislador optou pela natureza do crédito e não se atentou que os créditos tributários e os créditos não tributários julgados no âmbito do Carf possuem o mesmo rito.

Isso fez com que, de forma completamente contraditória, as turmas da 3ª Seção e até mesmo a 3ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais fixassem o entendimento de que os casos que não tratam de crédito tributário, como é o caso das multas aduaneiras, devem continuar submetidos a regra originária do voto de qualidade.

Além da declaração de voto já citada, da conselheira Maysa de Sá Pittondo Deligne, é possível atestar esse entendimento pelos processos que envolvem multas aduaneiras decididos pelo voto de qualidade, cite-se o resultado do julgamento realizado em 14/9/2020 pela 3ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais e formalizado por meio do acórdão nº 9303-010.620:

“(…) Acordam os membros do colegiado, por unanimidade de votos, em conhecer do Recurso Especial e, no mérito, por voto de qualidade, em dar-lhe provimento, vencidos os conselheiros Tatiana Midori Migiyama, Valcir Gassen, Érika Costa Camargos Autran e Vanessa Marini Cecconello, que lhe negaram provimento (…)”.

Na ocasião o recurso especial era da Fazenda Nacional, então o voto de qualidade foi aplicado de forma desfavorável ao contribuinte. Ou seja, a 3ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais contrariou a alteração promovida pela Lei nº 13.988/2020 por entender que ela só se aplica a créditos tributários, conclusão que pode ser confirmada mediante a visualização do vídeo da sessão disponibilizado pelo Carf no YouTube.

Ora, para a aplicação da prescrição intercorrente não é razoável fazer uma distinção entre créditos tributários e não tributários, mas para a aplicação do voto de qualidade é razoável?

Há clara incoerência e boa vontade excessiva da maior parte dos membros do Carf em argumentar que a prescrição intercorrente não se aplica ao procedimento administrativo fiscal e, em contrapartida, argumentar que o voto de qualidade, apesar do procedimento administrativo fiscal ser o mesmo para os créditos tributários e não tributários, só se aplica de forma favorável ao contribuinte quando estão em discussão créditos tributários.

Na verdade, há uma semelhança em ambos os entendimentos: nos dois casos a conclusão tem sido prejudicial ao contribuinte.

***

Por Douglas Stelet Ayres Domingues, especialista em Direito Tributário e Contabilidade Tributária pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC/RJ) e especialista em Auditoria Tributária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Revista Consultor Jurídico

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